Quando somos mais novos acreditamos que é no carro que reside o segredo do prazer de condução. Mais tarde, da mesma forma que nos apercebemos que nem só de lavagante ou de rosbife se faz a melhor gastronomia, também aprendemos que a viatura não é fundamental para que um passeio seja memorável. O veículo é apenas um dos factores que se vê glorificado pelo que é realmente decisivo no prazer de conduzir, a estrada. É a magnificiência da estrada que nos leva a querer percorrê-la e é esta que, no fundo, realça a arte da condução.
Tirar férias para andar atrás das melhores estradas à volta de uma montanha, pode parecer estranho para muita gente, mesmo para mim. Mas afinal, quantos não percorrem o mundo atrás das melhores ondas para surfar, quantos não fazem de tudo para subir às montanhas mais altas do planeta, para não falar de quem percorre kms para ir comer a um três estrelas Michlelin.
Decidi então fazer uma viagem até paragens em que muitos dizem existir o mais belo conjunto de estradas da Europa - definição válida como outra qualquer, pois duvido que alguém já as tenha percorrido a todas para poder avalizar com propriedade.
Tinha-me levantado cedo, há muito que vinha no enfadonho ritmo da "auto-bahn" e dos túneis austríacos. Estava com fome e a luz da reserva tinha-se acendido já há uns trinta quilómetros atrás, mas não queria parar, só queria sair daquele tormento de rectas intermináveis, auto-caravanas, autocarros de excursão e a atmosfera nauseabunda das passagens subterrâneas feitas a oitenta à hora.
Parámos para abastecer as máquinas e o corpo, verificámos os níveis dos fluídos fundamentais e memorizámos o percurso mais uma vez. Era a última paragem antes de começarmos o que nos tinha levado ali, íamos por norte em direcção ao Passo dello Stelvio.
Cá de baixo a vista era impressionante, tínhamos quarenta e oito ganchos para fazer em pouco mais de quinze quilómetros, até aos 2770 metros de altitude. O traçado era avassalador, marcado pela paisagem dos Alpes e por aquele percurso torcido e retorcido, tortuoso e viciante, capaz de vergar a mais capaz das mecânicas e de levar ao rubro o mais calmo dos condutores.
A estonteante sequência de ganchos intervalados de pequenas rectas, começa por ser estranha e cansativa, mas depois, assim que deixamos de lutar contra os elementos a condução começa a fluir, desenhando a melhor trajectória, travando mais cedo e curvando de acelerador aconchegado, sentimos o porquê de ali estar. Chegamos depressa ao topo, depressa demais, com vontade para fazer outros tantos kms de ganchos. Entusiasmados, olhamos para baixo com o sentimento de vitória. Estamos eufóricos e até a máquina parece estar a gostar.
Antes da viagem, muitos me avisaram e outros tantos agoiraram, de que a montada não resistiria a tal provação ou então que seria eu a não resistir à dureza da montada. Na melhor das hipóteses ou regressaria a casa de reboque ou de ambulância. Mesmo assim decidi fazer a jornada de mota, não me arrependi.
Até ao topo dos Alpes e através destes, a MV Agusta não só subiu com elegância, souplesse e segurança, como não se queixou de absolutamente nada. Fiel companheira, pediu apenas gasolina. A bem-dizer, pediu muita, mas afinal, só quem não é para andar é que não é para consumir e ela fartou-se de andar.
Quem consiga imaginar um sítio de peregrinação para crentes motorizados, está a imaginar o topo do Passo dello Stelvio. Ali, mesmo num dia de semana, encontra-se todo o tipo de gente em todo o tipo de montadas. Ali tive também a certeza que é a estrada que realmente faz o momento. O condutor do Turbo i.e. estava tão radiante quanto o do 911, o artista que vinha na GS500 vibrava tanto quanto o da 848.
Aquele cume Alpino tinha, de facto, uma magia especial, era talvez o sítio mais "petrolhead-friendly" em que já tinha estado, mas havia uma estrada para o outro lado que também tinha de ser feita. Estava na altura de partir e desta era a descer.
Se o lado norte do Passo era um magnífico serpentear tortuoso, o lado sul era a recompensa por ali termos conseguido chegar. Descíamos em direcção a Bormio, o pôr-do-sol iluminava gloriosamente o vale verdejante, numa estrada que para além dos seus doze ganchos, tinha também curvas largas e pequenas rectas de quarta velocidade, tudo à vista e sem trânsito, permitindo escolher sempre a melhor trajectória. A estrada era tão boa que uma vez lá em baixo decidimos fazê-la outra vez para cima. Pura loucura alimentada a gasolina.
O dia ia longo mas antes de chegarmos ao albergue, já na Suíça, ainda fizemos o Umbrail Pass, mais um épico, que acabou por sorver a pouca energia que ainda tinha após 450 kms. A Agusta é tão confortável como uma lâmina de barbear, mas e então? Quem quiser conforto que fique no sofá a ver o TV Shop.
Mesmo na Suíça não foi difícil encontrar um "motorbike hotel", conceito bastante popular na Áustria e em Itália, com garagem fechada e todo o tipo de ferramentas e líquidos para recompor a mecânica. Mais importante que isso, pois a Agusta voltou a não reclamar mais do que gasolina, tinhamos um típico fondue a servir de companhia às recordações daquele dia inesquecível. Tínhamos passado por quatro países diferentes, encontrando gente tão estranha ou mais que nós, que por ali andava pelo simples prazer de conduzir.
O dia seguinte nasceu enublado e com aguaceiros. Estávamos encurralados pela chuva na sala do pequeno-almoço, a pensar que o dia anterior não se repetiria mais. A minha montada, com o seu calçado quase slick, dava-se mal com a humidade na estrada. Não havia nada a fazer a não ser esperar.
Estava já resignado a passar ali o dia em frente à TV, quando as nuvens começaram a desaparecer. Mesmo com a estrada ainda molhada, o sol desafiava-me para a etapa em direcção a Davos.
Mochila às costas, a rodar com cautelas apesar do asfalto estar a secar rapidamente, deixávamos Santa Maria para trás, quando me deparo com uma gloriosa estrada de piso liso e aderente como o pano de uma mesa de snooker forrado a lixa de água. O asfalto era sublime, com um nível de aderência tal que apenas me preocupava em observar o esplendor da paisagem e com o desenhar da trajectória sempre em harmonia com aquela que é sequência de curvas mais perfeita que alguma vez encontrei.
Através do Ofenpass, amparado pelo dramático cenário do Parque Nacional da Suíça, encontrei 30 kms da estrada mais perfeita que já percorri. Afinal o assombroso Stelvio do dia anterior tinha sido só a preparação para este celestial pedaço de céu motorizado. Tinha valido a pena. Aquele momento só por si valeu a viagem, as férias e as dores de costas. Até a F4 ganhava ali outra dimensão, parecia ainda mais especial, ombreando com a sumptuosidade daquela estrada.
Nesse dia, à tarde, ainda fizemos o Fernpass, da Áustria para a Alemanha, mas por mais interessante que tenha sido serviu só para me assegurar que de Santa Maria Val Mustair em direcção a Davos, se encontra uma estrada do outro mundo, a melhor que já percorri.