Saturday, September 19, 2009

Do Inferno ao Céu por 22 euros


Há uns anos atrás, um amigo meu disse-me que os 15 euros mais bem gastos na vida de um homem eram aqueles que se pagavam à entrada do Passerelle. Sábias palavras, das quais nunca duvidei ou tão pouco me atrevi a questionar.

Foi há bem pouco tempo que o dinheiro mais bem gasto no mundo subiu de 15 para 22 euros. Até então, para mim, 22 euros serviam para tanto ou para tão pouco como para comprar 4000 cotonetes, talvez 11 lasanhas ultracongeladas ou então 2 garrafas de JB.

Quando muito davam para ir a esse templo da dança moderna russo-brasileira e beber mais um copo. Foi só quando desci a outro tipo de inferno que me apercebi do real valor de 22 euros. A partir do momento em que a cancela se levantou cada cêntimo valia agora milhões, cada curva, cada quilómetro de asfalto tornavam aquele momento em algo imaterial, sem preço.

Olhando para a descrição - uma faixa de asfalto em que se começa e acaba no mesmo sítio sem se passar por nenhum cruzamento, em que se circula só num sentido e em que não há qualquer limite de velocidade - parece que se trata de um circuito, mas não, para os alemães uma estrada nacional também cabe nessa definição. É assim o Nürburgring, uma estrada com portagem onde se aplica o código da estrada e onde todos podem ter acesso a andar com o acelerador agrafado.

A democracia da velocidade e da condução tem aqui o seu santuário, qual peregrinação a Meca em que todos são respeitados como fiéis, independentemente da sua origem, estatuto ou posição social. Numa VW Transporter, num 911 GT3, num Gallardo ou num Ford Ka, todos podem experenciar o que é andar a fundo pelos 21 quilómetros mais extenuantes do mundo motorizado. O condutor do Elise de volante à direita e o do Fabia Combi com a mulher e os filhos aos berros, podem de igual forma andar onde outrora grandes pilotos se tornaram deuses. Ali não há distinções ou constrangimentos, é a estrada que faz o momento e esta é publica, é de todos, cada um goza o seu bocado.

As horas com a Playstation apenas nos dão indicação para que lado são as curvas. O virtual está aqui bem longe da realidade. Nenhum sofá ou comando analógico nos prepara para o impressionante relevo da estrada, onde nem um único metro parece estar no plano horizontal. A subir, a descer, de um lado para o outro, os rails estão já ali, sinistros e assustadores como em nenhum plano do GT4, os correctores são desiguais, uns dóceis e suaves, outros íngremes como os picos dos alpes, sacudindo-nos violentamente para uma correcção de volante com o inevitável levantar do pé direito, a que se sucede o natural gritar dos pneus, como que a reclamar por não termos investido um pouco mais no "kit-de-unhas".

Fazemos "ouvidos moucos" as estas interjeições da mecânica, na próxima passagem será melhor, nesta altura já nada nos segura, compensamos falta de jeito com bravura (ndr loucura) estamos em transe, passamos com respeito por Bergwerk e pelas orelhas do Lauda, a fundo outra vez, chegamos ao Karussel, mergulhamos e esprememos o acelerador, a sensação é única, tenho de novo quatro anos e estou na Feira Popular, não quero mais deixar de andar à roda naqueles blocos de cimento inclinados, somos catapultados para fora, o fotógrafo está já ali, estica-se a terceira, Brünnchen está cheia de gente assistir, não estamos aqui para desiludir ninguém, o cérebro já não manda nada, é a ditadura da adrenalina, o tipo do 190 Evo não sai da frente, a descida para Pflanzgarten tem mais gente que nunca, os hieroglifos no asfalto murmuram que é ali que o passamos, a travagem é discutida já em cima da lomba, a frente aterra e roça no asfalto, que se lixe, só acontece a quem vai ao ataque, a malta aplaude, de novo com tudo no acelerador a subir de terceira para quarta, a traseira escorrega em delírio, somos os maiores, o chaço do Mercedes nem se vê no retrovisor, quando passo a ponte e aperto o relógio já cá não estou, levantei voo, o meu nome é Stefan Roser.

O Ring é assim, frenético e viciante. Nesse dia só desci à terra com as lamurias dos travões, neste caso com a inexistência destes, caso contrário acho que ainda hoje lá estava às voltas.

Segundo os locais - os abençoados que vivem no Olimpo - há uns dez anos que aquela zona à volta do castelo se tem vindo a transformar para receber um negócio florescente, o do turismo motorizado. Em todo o lado há todo o tipo de oferta para quem ali queira passar um bom bocado, quer seja um doido do "street racing" ou um casal de pensionistas a passear o MGB.

À noite, no largo em frente ao novo circuito, entre cervejas e ráteres, vislumbrava-se uma multidão encarnada de personagens como Stirling Moss, Sabine Schmitz ou Stefan Belof. Ali todos se acreditavam como os mais rápidos. Qual grupo de caçadores ou pescadores, estávamos feitos uns mentirosos, uns tipos felizes a contar façanhas impossíveis.

Todos tão diferentes e no entanto, éramos todos iguais num mesmo ponto, quando pagávamos a cerveja ficávamos todos com aquela cara de arrependimento, afinal o custo daquilo que passado um pouco todos deixaríamos no urinol, dava para uns três ou quatro quilómetros de felicidade no inferno (céu) verde.

Depois do Nürburgring, aos meus olhos, tudo o que o dinheiro compra vem em múltiplos de 22 euros e ainda bem.


3 comments:

Anonymous said...

PARABÉNS! Mais um felizardo que não morrerá sem ter dado umas voltas no mítico Nurburing.
Também eu tenho esse sonho, que já comecei a organizar mentalmente. Passa por fazer uma "peregrinação", sempre a rolar, deste cantinho à beira mar plantado, até essas paragens. A ver se consigo "arregimentar" pelo menos dois dos meus maiores amigos. O plantel seria então constituído por um Corolla GT 16v de 84, um Nissan 200 SX (de 1992?) e créme de la créme, um M3 E30 Evo! É um sonho, e o sonho comanda a vida!
O Presidente

Anonymous said...

É bem verdade. que sonho!
Estou a perceber que se tirou tempo para alguns prazeres muito egoístas (digamos assim)...
Desta vez foi de carro! :-)

pilotaço said...

22 euros??? E o resto? Não conta? Vale a pena referir que eu já lá quis ir com o teu carro e fui vetado... (isto é só inveja a falar!)